quarta-feira, 7 de setembro de 2011

o livro amarelo

Ela ia correndo e correndo. Passavam os postes borrados, os carros, as pessoas fora de foco. A biblioteca podia fechar a qualquer hora: cinco horas e cinquenta e cinco minutos. A Dona Emengarda fechava a biblioteca às seis da tarde, ela se lembrava. E deveria tomar um lanche no Café Chique. Pediria pão de queijo com manteiga e pensaria nos netos queridos e no que acabou de fazer: comprar um carrinho com controle remoto!
Mas se ela pudesse chegar antes, alguns instantes antes, podia ainda atravessar o portão já embaixo, pertinho do chão e correr entre as estantes e encontrá-lo tranqüilo e seguro na última prateleira do dia.
O cadarço do sapato desamarrado era um obstáculo para a corrida. Mas ela achava que não devia pensar nele para não perder a constância. Agora que havia finalmente, encontrado um ritmo, coordenando respiração a cada três passadas, não queria parar. O cadarço estava perdido. Ele enroscava nas pedras da rua, nos gravetos e naquelas pequeninas idéias que não se emendam em nada. Não chegam a existir de fato. Estava correndo e correndo e não era boa nisso. Era por pura vontade que assim o fazia.
Dona Emengarda, espere, eu, eu preciso, a senhora lembra-se daquele livro? Que eu, nossa, espere, me falta ar, era um pequeno e amarelinho, deve estar desgastado, desculpe, não me lembro o nome, não feche, está fechando?
Calma, respire, eu espero. Pode ter calma, estou aqui, bem aqui do seu lado. Vamos, respire com calma e cadência. Depois me diga.
A senhora, tão boa, calma, ainda sabe quem eu sou? Não sei se já soube, mas também não sei ao certo, mas é do livro, do livro que sinto falta. Ele era mais ou menos assim de grossura e assim de largura e amarelo e tinha uns desenhinhos soltos nas páginas.
Olha que sou boa nisso, de fisionomia de livro. Você vinha bastante aqui. Venha comigo, talvez você o ache.
Obrigada, obrigada mesmo, é uma grande coisa que faz por mim, ajudando a encontrá-lo. Estou precisando tanto dele. Muito mesmo. É para algo profundo. Nossa, as estantes estão novas. Faz tanto tempo. A distribuição é a mesma, me parece. É como voltar no tempo, nossa, estou falando loucuras, desculpe.
Vamos ver aqui, nos infantis, ah é, estão novinhas, foi agora com essa nova prefeitura, eles gostam e acham importante ler, aqui ficavam as mesinhas, está lembrada? Agora ficam ao ar livre, no pátio. Bem, era aqui. Espero que tenha sorte.
Ah, a senhora não vai, tudo bem, vou ser rápida, está tudo tão... Bem, já encontro a senhora...
Ela foi caminhando pelo corredorzinho de largura boa, nem tão estreito, nem tão largo, olhando um a um, bem no centro para ler o título, quem sabe assim se lembraria. Veio vindo, de forma condensada, uma espécie de nuvem de sentimentos, que tomava conta dela por completo, só porque pensava no livro. Estava tentando não chorar, para não embaçar a vista, coisa que já acontecia e podia atrapalhar a rapidez do tempo.
Não estava encontrando. Não estava encontrando. Não era possível. As pessoas não devolviam os livros? Esse não é, não é, não é. Como pode ter sumido? Desaparecido. Era tão simples. Chegar e pegar e preencher a ficha e agora... Melhor ir. Só vou repassar mais uma vez. Ele era tão completo, tão meu, tão perfeito para mim. Se eu o encontrasse...
Ela foi seguindo as prateleiras deixando que a mão solta e pesada batesse no máximo de livros que conseguisse. Foi batendo a mão nos livros e indo embora. Despedindo-se. Sozinha, sem o seu passado. Sem entender o que entendia. Era vazia, sem entender quem era quando pequena.
Dona Emengarda só tinha deixado uma fresta da porta aberta, por onde se podia ver o pé cansado e bondoso dela. Ela abaixou todo seu corpo e foi parar lá fora. A porta desceu. A esperança desceu. Era fim de tarde e ela tinha perdido todo seu passado.
Não achou não,menina? Que pena. Vou ver nas fichas amanhã. Quem sabe está com alguém, que devolve logo cedo. A sua ficha... o seu nome... a Memória é dura.
É Isabel. Meu nome. Quem sabe alguém... mas é isso... fica para amanhã, a senhora foi tão... muito mesmo... atenciosa... passar bem.
Ficava tentando segurar o inchaço que estava sendo. A tristeza de querer assim tão de repente e com tanta força aquele poema, que lia quando ficava lá fora, sentada no meio fio da lavanderia da sua casa.
Uma bolsa quando está pesada
Fica no ombro pendurada...
Fica no ombro... quando está pesada... de sonhos...
Não lembrava mais. Só do sabor que exalava de si mesma quando o lia. Vai ter que deixar para amanhã. Como se a vida pudesse ficar assim: suspensa por um dia.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Só dezenove centavos

Se ele chegar eu saio com ele. Agora, se ele não vier, aí nunca mais. Mas eu queria que ele viesse hoje porque consegui puxar o cabelo para trás sem que nenhum fiozinho ficasse para fora desse ramo que fiz. Se meu cabelo fosse flor, seria hortênsia. Que combinam muito bem com meus óculos. Hortênsia e óculos fazem uma bonita conjuntura.
Meus óculos têm um grau qualquer e servem muito bem em mim. Mas o caso é que não sei se tenho algum problema de vista. Eu enxergo tão bem. Tanto que preciso dos meus óculos para de vez em quando.
Daqui de onde estou posso ler aquela placa com uma facilidade impressionante. Daqui de onde estou vejo que as laranjas custam só dezenove centavos. Eu uso óculos o dia todo e os procuro por toda parte se não estiver com eles. Por exemplo: tem um desenho bonito e cabem muito bem no meu rosto.
Se eu não usasse óculos alguma coisa faltaria em mim. Mas eu não saberia dizer o que é, porque eu uso óculos. Então o que me falta é justamente, pois então, uma coisa que não me faz falta.
Estou hoje com uma calça verde que me aperta e meus sapatos não são meus. Mas não era nada disso que eu queria falar. Eu só fico falando, quando não tenho nada para falar e também esperar não é o meu forte. Porque se ele não vier. E eu tiver que lidar com aquelas laranjas que custam dezenove centavos o dia inteiro. Eu não quero chupar laranjas e nem esperar e é por isso, agora posso concluir com certeza, que eu uso óculos.
Agora, se por acaso, eu tocasse algum instrumento, eu não estaria aqui esperando, ou sabendo quanto custam as laranjas e nem esperando. Eu estaria tocando meu instrumento. E se, de alguma forma, alguém me perguntasse o que faço, eu diria: eu não uso óculos. Porque, com certeza, eu não usaria.
Se ele chegar eu saio com ele. Agora, se ele não vier, aí nunca mais. E também eu peguei esses sapatos emprestados e eles caem bem com essa calça que está me apertando. Eu gosto de combinar as coisas e de fazer um conjunto que, no total, não se parecem combinados, mas que no fundo, sabemos que combinam muito bem.
Tirando os óculos, as laranjas custam dez centavos, porque - o nove - perde aquele rabinho que o caracteriza. Só para variar um pouco eu gosto de pensar nos dez centavos. Aquele – dezenove - centavos estava aumentando a minha espera. Esperar devia ser um momento quase cego. Mas com luz, porque tenho que confessar que tenho medo do escuro e é por isso que eu uso óculos.
Como meu cabelo está bem puxado para trás, pode-se pensar que eu tenho os olhos pequenos e aí coloco os óculos. É um pequeno truque que eu faço, para que eu fique mais alta. Ele, com certeza, me acha mais alta do que eu sou. Agora, se eu tira-los, ele vai saber exatamente o meu tamanho. Mas talvez, seja melhor.
Esse negócio de sempre precisar de alguma coisa, está cada vez mais cansativo. Porque eu sempre fico procurando quando os perco e sempre perdendo quando não estou procurando. Daí não sobra muito tempo para outras coisas, como por exemplo, chupar laranjas. Se ele não vier eu nunca mais saio com ele.